Cobertura Universal de Saúde: um imperativo para Angola e para o mundo
Este artigo foi publicado pela primeira vez no Jornal de Angola, cuja versão pode ser encontrada aqui: https://www.jornaldeangola.ao/noticias/9/opini%C3%A3o/654144/cobertura-universal-de-sa%C3%BAde:-um-imperativo-para-angola-e-para-o-mundo
Por: Dr. Tomas Valdez, Coordenador de Políticas e Sistemas de Saúde da OMS em Angola.
Há escolhas que nenhum chefe de família deveria ter de enfrentar. Pensem no Senhor Figueira, que sofre de hipertensão e diabetes. Todos os meses, ele tem de fazer contas entre a alimentação, a escola dos filhos e o preço dos comprimidos. Quando o dinheiro falta, a doença não espera e o tratamento é adiado. Esta realidade cruel, que obriga as famílias a sacrificar os cuidados de saúde para garantirem as necessidades básicas, é precisamente o que a Cobertura Universal de Saúde (CUS) pretende eliminar, ou seja, garantir o acesso a serviços essenciais sem risco financeiro.
A 12 de Dezembro comemora-se o Dia da Cobertura Universal de Saúde, uma data que vai para além da simbologia e que nos convoca à acção. A saúde é um direito humano fundamental, consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos e reafirmado nas constituições da maioria dos países, incluindo Angola. No entanto, este direito continua distante para milhões de pessoas.
Segundo o relatório Global 2025 da OMS e do Banco Mundial, os progressos globais estão muito aquém do necessário para cumprir as metas da Agenda 2030. O alerta é claro: a desaceleração é preocupante e exige uma acção política imediata.
Entre 2000 e 2023, o Índice de Cobertura de Serviços (SCI) aumentou de 54 para 71 pontos — um progresso real, mas insuficiente. Ainda assim, 4,6 mil milhões de pessoas continuam sem acesso a serviços essenciais e 2,1 mil milhões enfrentam dificuldades financeiras devido a despesas de saúde pagas do próprio bolso. Dificuldade financeira significa gastar mais de 40% do orçamento discricionário familiar com cuidados de saúde. Nos três quartos dos países com dados disponíveis, os medicamentos representam mais de 55% dessas despesas; nos países mais pobres, representam 60%, desviando recursos destinados à alimentação, transporte e educação.
A lentidão na resposta para a garantia de cuidados de saúde de qualidade tem custos humanos devastadores: a mortalidade materna não diminuiu desde 2015, com quase 300 mil mulheres a morrerem todos os anos durante a gravidez ou o parto; a imunização infantil estagnou; e as doenças não transmissíveis, como a hipertensão, a diabetes, o cancro e as doenças mentais, causam 17 milhões de mortes prematuras por ano, sobretudo em países de rendimentos baixo e médio. Sem uma aceleração, o SCI global deverá atingir apenas 74/100 até 2030, deixando uma em cada quatro pessoas a enfrentar dificuldades financeiras no final da era dos ODS.
Que medidas práticas devemos adoptar para alterar este cenário? As evidências são claras: o reforço dos Cuidados de Saúde Primários (CSP) é a estratégia mais rápida, eficaz e equitativa para alcançar a Cobertura Universal de Saúde. Os CSP podem resolver até 90% das necessidades de saúde, salvar 60 milhões de vidas e aumentar a esperança média de vida global em 3,7 anos até 2030. Em Angola, Cuidados de Saúde Primários significa ter postos e centros de saúde funcionais, equipados e próximos das comunidades, profissionais de saúde motivados, capacitados e com incentivos para trabalharem em áreas rurais, medicamentos disponíveis e acessíveis e percursos de cuidados de saúde simples, sem barreiras que desencorajem as pessoas a procurar assistência médica.
Que acções concretas devem ser reforçadas para garantir a CUS? Primeiro, garantir um financiamento sustentável, aproximando-se dos 15% do Orçamento Geral do Estado para a saúde, conforme o compromisso africano de Abuja. Segundo, implementar uma Estratégia de financiamento sustentável para garantir a disponibilização de cuidados de saúde essenciais a grupos vulneráveis. Terceiro, garantir o acesso a medicamentos a preços acessíveis, através de compras centralizadas, com transparência e protocolos clínicos que assegurem a disponibilização gratuita de medicação ou com copagamentos simbólicos. Quarto, é necessário implementar uma Rede de CSP funcional, com a requalificação de unidades, formação e retenção de profissionais, especialmente em zonas rurais. Quinto, investir na prevenção e literacia, através da realização de rastreios simples e campanhas comunitárias. Sexto, implementar uma governança baseada em dados, com monitorização de SCI e despesas por província e publicar painéis de desempenho. Séptimo, adoptar uma abordagem multissectorial, pois a saúde também depende de acesso à água, saneamento, nutrição, educação e protecção social.
Cada dia sem acção significa empurrar mais famílias para a pobreza devido aos custos de saúde. A saúde não pode ser um privilégio, nem uma causa de empobrecimento. Cobertura Universal de Saúde é, simultaneamente, um imperativo moral, uma boa política pública e uma decisão económica inteligente. As economias com sistemas de saúde robustos absorvem choques e produzem mais. Os países que tratam a saúde como um direito reforçam a coesão social e a confiança nas instituições.
Por isso, ao celebrarmos o Dia da Cobertura Universal de Saúde, a mensagem é simples e urgente: ninguém deve adoecer e cair na pobreza. Investir na saúde é investir no desenvolvimento, na equidade e na dignidade humana. Devemos trabalhar todos juntos — famílias, sector privado, media, políticos e comunidade nacional e internacional — é possível garantir que nenhum cidadão, como o Sr. Figueira, tenha de escolher entre alimentar-se e tomar a medicação necessária.